segunda-feira, 14 de maio de 2012

De Mao a melhor

Por Pedro Cezar Dutra Fonseca, professor titular do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS.

Ao estudar camelôs de Porto Alegre, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado puxou um fio que a levou ao Paraguai e à China e virou tese premiada e livro

Quando o professor Ruben Oliven, do Departamento de Antropologia da UFRGS, convidou-me para participar de uma banca de qualificação de doutoramento, minha primeira reação foi de tratar-se de um engano. Já havia antes participado de outras bancas, e até orientado trabalhos em áreas próximas da economia, como ciência política, administração, história e sociologia, mas na antropologia era a primeira vez. Ele esclareceu que a tese possuía forte interação com minha área de trabalho e, como orientador, julgava indispensável alguém com essa formação compor a banca. Houve época, como em meados do século XX, que Antropologia Econômica era disciplina valorizada e integrava o currículo das mais importantes universidades do mundo. Com a pós-modernidade, entraram em refluxo na academia os “paradigmas totalizantes”, como o marxismo e o estruturalismo, e o recurso às variáveis econômicas para explicar as formações sociais e suas possibilidades de transformação perdeu o charme. Ademais, interdisciplinaridade é como o “politicamente correto” – difícil quem se declare contra, mas na prática são outros quinhentos.

Justamente esse caráter de transitar entre várias áreas das ciências sociais – sem, contudo, perder sua sólida visão de antropóloga, posto que a transdisciplinaridade supõe o conhecimento especializado – é um dos pontos fortes da tese, ora publicada em livro, de Rosana Pinheiro-Machado. Made in China obteve a primeira colocação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) entre as teses de doutoramento do país. E o referido caráter, além da notória atualidade do tema e da qualidade da pesquisa, certamente pesou, mais recentemente, para que a Capes lhe conferisse o prêmio de Melhor Tese de 2011, concorrendo com todas as outras áreas do conhecimento.

O livro começa com a síntese das primeiras pesquisas da autora, ainda como estudante de graduação, entre os camelôs de Porto Alegre. Logo percebeu que estes integravam um circuito; de onde vinham aquelas quinquilharias? Quem ganhava com isso? Como chegavam até aqui, quem as trazia? Em seu mestrado, Rosana Pinheiro-Machado foi atrás das respostas. Viajou com sacoleiros, foi para a Tríplice Fronteira, entrevistou e conversou “informalmente” com chineses, taiwaneses, brasileiros, paraguaios, mulheres e homens, comerciantes, taxistas e policiais. Mas logo compreendeu que para fechar o circuito precisava conhecer a origem de tudo: a China seria o tema de sua tese de doutorado. O trabalho multissituado traz consigo, portanto, a bagagem acumulada dessas múltiplas experiências e vivências de pesquisadora atenta e disciplinada.

A viagem “global” das mercadorias, da produção à ponta, é acompanhada e relatada em primeira pessoa e em estilo vivo e direto, o que torna a leitura agradável e de interesse de todos que querem entender com mais acuidade a cultura, a vida e as práticas cotidianas do país que, depois de décadas, consegue sinalizar para uma mudança na hegemonia das relações internacionais – a lembrar o fato mais próximo de nós, conseguiu, depois de quase um século, ultrapassar os Estados Unidos como maior parceiro comercial do Brasil. As mercadorias viajam. Em algum lugar do planeta precisam realizar seu destino: transformar-se em dinheiro. E com elas levam pessoas, mudam vidas, famílias, cidades e países. Mesmo que se resista, é impossível não lembrar a metáfora de Marx no capítulo primeiro d’O Capital, para quem elas, a partir de certa escala de produção, se autonomizam e constituem como um mundo seu – o “mundo das mercadorias” – com exigências e regras próprias, as quais subordinam os seres humanos, que parecem estar a seu serviço, confundindo quem é sujeito e quem é objeto. Mas o mesmo Marx, geralmente sisudo e não afeito a tiradas de humor mais chãs, surpreende o leitor que vira a página para começar o segundo capítulo com uma frase nada metafórica, mas de pura concreção, que na tradicional tradução da Civilização Brasileira aparece como: “Não é com seus pés que as mercadorias vão ao mercado, nem se trocam por decisão própria”.

As mercadorias precisam de pés e, portanto, de braços, de cérebros e de mentes, e aí começa o trabalho etnográfico da antropóloga. Junto com elas viajam sonhos, necessidade de sobrevivência, ânsia por ganhos fáceis e nem sempre tão fáceis, laços de solidariedade, preconceitos, mitos, conflitos e laços familiares ora desfeitos ora fortalecidos. Como no filme Um Conto Chinês, o espaço não mais se impõe como limite. Vende-se no camelódromo às margens do Guaíba o mesmo que em Ciudad del Este, no centro de Capão da Canoa ou nas Ramblas catalãs, nos “turcos” de São Borja as mesmas quinquilharias encontradas no Time Square ou nas lojinhas do Quartier Latin.

Difícil destacar os pontos altos em trabalhos como esse, mas devo mencionar pelo menos três. Primeiro: não fugir de questões polêmicas e, ao enfrentá-las, evitar respostas superficiais, preferindo esclarecer o teor e as nuanças da complexidade. O exemplo mais claro, e na ordem do dia da política externa, é quanto aos limites do relativismo cultural como argumento para aceitar a flexibilização de temas como direitos humanos e legislação social. A descrição de alojamentos de trabalhadores nas indústrias chinesas (nos quais a televisão, explicava o dono, era pequena, mesmo que as grandes não fossem tão mais caras, para “não distrair muito” os trabalhadores), a discriminação contra mulheres, o trabalho infantil, as jornadas superiores a 12 horas, as doenças de fadiga, o sufocar das críticas – tudo isso pode ser aceito em nome de se tratar “de outra cultura”? A autora percebe, com muita precaução, que o relativismo cultural nesses casos, mais que a originária defesa das minorias sob a égide da virtude da tolerância, serve como uma luva para a ideologia do poder e do status quo: “a China precisa crescer” é a palavra de ordem, e o nacionalismo ad hoc recomenda não importar os valores “ocidentais e burgueses”. Tudo, portanto, se consagra como legítimo, até porque os trabalhadores ora gozam melhores condições de vida em comparação com sua situação anterior: os mesmos argumentos utilizados na Inglaterra da Revolução Industrial e com relação aos nordestinos migrantes de São Paulo. Os ocidentais nem sempre entendem a China; afirma a autora: “Autoridades e empresários parecem ecoar um mesmo som, apelando para a piedade das populações vulneráveis – algo que somente um nativo seria capaz de compreender”.

Em segundo lugar, a bela descrição teórica e vivencial do guanxi, laços pessoais recíprocos que aproximam as pessoas, constituindo-se numa espécie de rede de relacionamento entre elas, incluindo autoridades e empresários, em troca de presentes e favores. É inevitável a lembrança do “jeitinho” e do “brasileiro cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, pois não se trata de uma instituição organizada e hierárquica como a máfia italiana, mas de uma teia constituída a partir de indivíduos; e, ao incorporar representantes do Estado, dá lugar ao entrelaçamento entre o público e o privado. No Brasil? Não, na China. E tudo isso num país “cujas leis raramente são cumpridas”, no qual “ainda [se] anuncia o ditado popular ‘leis foram feitas para serem desobedecidas’ – conforme jocosamente ouvi muitas vezes ao longo da pesquisa”. Mais interessante ainda é o fato de, para a pesquisa poder viabilizar-se, a própria autora precisou “estabelecer e cultivar” guanxi, arte de relacionamento aprendida às vezes com sofrimento e abaixo de preconceitos (o clichê “mulher brasileira, jovem e com boa aparência”, na China, à procura de empresários emergentes e ricos exportadores para fazer pesquisa), sem o que não teria acesso às empresas e às pessoas que precisava conhecer e entrevistar. Nesse aspecto cabe ressaltar sua relação com Feifei, sua tradutora, intérprete, guia e facilitadora de relações – uma personagem à parte que, por si só, já vale a leitura da obra. Foi com ela que Rosana teve de aprender como “as coisas aqui funcionam” e, mais que isso, pelo seu comportamento (sugestões, atos, ideias, práticas simbólicas pessoais e no mundo dos negócios), intencionalmente ou não, consegue expressar ao leitor, como nos quadros de uma exposição, retratos dos modos e dos estilos de vida de uma sociedade.

Finalmente, como terceiro ponto, o relato da visão dos empresários integrantes do circuito e a linha tênue entre o formal e o informal, entre o mercado “paralelo” e o “reconhecido”. “No Mundo Nada se Cria, Tudo se Copia” é o título de um capítulo. Não se trata de uma economia “subterrânea”, ilegal, às escondidas. Só é falsificado o que merece ser. Como afirma um alto executivo da fábrica D&G Benetton na China: “Se um dia uma bolsa não for falsificada, aí vamos ter um problema sério”. Assim, a pirataria vira marketing, o pretensamente ilegal ganha status, o mercado acaba criando regras próprias à margem e junto com o Estado. As autoridades não apenas toleram, mas incentivam; a falsificação é condenada, mas ao mesmo tempo praticada e abertamente defendida. Muitas vezes os jornais locais noticiam que o governo agirá “energicamente” contra a pirataria. Faz parte do jogo a negação, mas resta evidente sua indissociabilidade tanto da flexibilização e da terceirização das atividades, como da mundialização do circuito mercantil. Ou seja, justamente as marcas estruturais do estilo de crescimento das últimas décadas, nas quais se assentam o crescimento da China e de outros países asiáticos. Termos de conotação costumeiramente jocosa ou de carga negativa – como contrabando, pirataria e suborno – adquirem outros significados, posto que não só são tolerados, mas em certos casos, pelo que se depreende, até incentivados pelas autoridades. Ocorre na prática um arranjo muito peculiar entre mercado e Estado que me ocorreu chamar de “feixes” de legalidade (e de ilegalidade), até porque essas atividades de produção e distribuição acabam influenciando significativamente o desempenho invejável das variáveis econômicas integrantes da mensuração contábil dos países, como PIB, balanço de pagamentos, arrecadação tributária e ingressos de capitais.

Made in China, portanto, traz colaboração inestimável para entendermos melhor a cultura desse país tão surpreendente e ainda misterioso para nós, que cultua a memória de Mao Tsé-Tung e pressiona diplomaticamente para ser reconhecido como economia de mercado; que oficialmente é comunista, mas lidera a produção massiva e globalizada de mercadorias e ressuscita relações de trabalho da época da Revolução Industrial; que, ao lado do ateísmo oficial, adapta o confucionismo ao espírito capitalista, confundindo o leitor weberiano (aliás, muito bem abordado por Rosana ao tratar “Do Espírito do Capitalismo Chinês”, no capítulo 4). E que está tão longe de nós geograficamente, mas, como a leitura permite perceber, tão próximo em práticas e no imaginário coletivo: o país do futuro, que quer crescer 50 anos em cinco, como o Brasil sonhou no século 20, o lucro fácil e rápido do aventureiro salientado por autores como Sérgio Buarque de Holanda e Viana Moog, a simbiose público/privado, as relações pessoais a perpassarem o mundo “racional” dos negócios, o nacionalismo como ideologia do desenvolvimento, o crescimento coetâneo com o aprofundamento das desigualdades. E enquanto nos perguntamos até quando a China terá fôlego para crescer a taxas invejáveis, com inflação baixa e sem mudanças nas instituições políticas e na legislação social, tudo em plena crise internacional, o país parece não se preocupar com essas mazelas teóricas dos economistas ocidentais. Ou vai de Mao a melhor, como sugere a bem-humorada autora do livro.


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